Guerra contra as drogas: ‘Não há evidência científica para a proibição de drogas’ diz João Menezes

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Guerra contra as drogas: ‘Não há evidência científica para a proibição de drogas’

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João Menezes

O modelo proibicionista e de guerra às drogas, entre os muitos aspectos negativos que carrega, como apontam especialistas (ver aqui e aqui, por exemplo), representa um entrave ao uso da maconha para fins medicinais. Neste comentário ao blog do CEE-Fiocruz, o médico e professor João Menezes, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observa que os avanços nesse sentido são lentos. “A obtenção de material para estudo, a obtenção da própria planta, tudo é difícil para a experimentação. Ainda precisamos de muita regulamentação para fazer pesquisas farmacêuticas rigorosas, padronizadas e controladas”, destaca João Menezes.

Para as pessoas que estão sofrendo agora, basta a descriminalização, pois imediatamente terão acesso à planta e acesso médico de forma segura.

Leia a seguir o comentário completo.

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A maconha é uma planta medicinal milenar, usada por várias culturas não só em rituais, não só de forma recreativa, mas como terapia, como remédio. Há evidências antropológicas de que a maconha tem uso médico. É usada como terapia na Índia, China, países da África. No entanto, ainda não temos uma boa avaliação de seu uso clínico, porque a maconha foi proscrita, de forma irracional, na década de 60, e vem sendo proibida em diversos países desde o começo do século XX. Para se definirem os tipos de substâncias a serem usadas, a concentração, a quantidade, são necessários estudos clínicos. Outros fármacos, como cocaína e alguns psicodélicas, que podem ter uso médico, também são proibidos de forma irracional.

Não há evidência científica de que a proibição e a criminalização dessas substâncias tem eficácia para redução de danos decorrentes do uso. As pessoas continuam usando, e sem a segurança necessária contra efeitos colaterais como corrupção, violência, crimes, intoxicação e ingestão de contaminantes. Essa prevenção não pode ser aceita pela comunidade médica, mas a comunidade médica continua apoiando a proibição arbitrária de certas drogas, apesar da inexistência de evidências de que essa política seja eficaz e segura.

Toda medicina preventiva precisa de testes clínicos para que seja prescrita. No caso da vacina, por exemplo, que é um método de prevenção, para sua prescrição ser liberada, é preciso estudos pré-clínicos, fase I, II e III, realizados em populações controladas, duplo-cego [no qual o pesquisador não sabe quais pacientes estão recebendo o medicamento e teste e quais estão recebendo placebo] e randomizados. Esses estudos, no entanto, nunca foram realizados para fundamentar a proibição da maconha como método de prevenção. Ninguém pegou uma população submetida a proibição e uma população não submetida a proibição para ver o que acontece. As evidências apontam, inclusive, que a proibição é ineficaz e periogosa.

A maconha vem sendo testada desde a década de 1970, com resultados promissores, mas, apesar disso, esses estudos não avançam. O avanço é lento, porque a proibição impede os experimentos em humanos e também os estudos pré-clínicos, necessários para muitos dos compostos. É difícil a licença de importação, a obtenção de material, a obtenção da própria planta para a experimentação. Precisamos de muita regulamentação para que se possam fazer pesquisas farmacêuticas rigorosas, randomizadas e controladas. O resultado é que nos mantemos sem um medicamento nacional, seguro, de acesso em nível farmacêutico.

A força das iniciativas populares aliada à ausência de evidências médico – cientificas da eficácia da proibição vem ampliando o universo de estudos dessas substâncias. Hoje em dia, o uso da maconha medicinal é uma realidade bem aceita nos locais onde é permitido.

Poucos dos componentes químicos da maconha foram purificados e testados isoladamente, exceção feita ao tetraidrocanabidiol (THC), ao canabidiol (CBD), e não mais que outros cinco, entre as centenas de compostos possíveis. A maconha é uma planta que tem cerca de 400 componentes, e, desses, pelo menos uns 60 específicos dela, os canabinoides. Há variações desses canabinoides em cada tipo de maconha. É a atuação conjunta das substâncias contidas na planta que resulta nas propriedades terapêuticas do seu uso.

Apesar de liberado pela Anvisa, o Sativex custa muito caro, mais do que o necessário. E nós não temos como produzir

Há testes clínicos para alguns dos compostos da maconha, como os extratos estandardizados produzidos por indústrias farmacêuticas internacionais. Um exemplo é o extrato do laboratório GW farmacêutico, regulamentado pela Anvisa para importação e venda no mercado nacional. Fora do Brasil, é conhecido como Sativex, mas virá para cá com o nome de Mevatyl. O extrato tem concentrações similares de THC, principal princípio ativo da maconha, e de CBD. Essa formulação funciona muito bem em algumas afecções neurológicas, como a esclerose múltipla. Alguns países, como Inglaterra e Canadá, já licenciam o Sativex. Aqui, apesar de liberado pela Anvisa, custa muito caro, mais do que o necessário. E nós não temos como produzir.

Não existe o CBD puro para venda, ainda. Em geral, o que há é o extrato de maconha enriquecido de CBD, e com pouquíssimo THC – o que vulgarmente se chama de extrato de cânhamo. Fora do Brasil, esses medicamentos são classificados como suplementos alimentares. Esses compostos podem ser usados como fitofármacos. A Anvisa liberou para importação uns 10 ou 12 extratos ricos em CBD, das cerca de 30 a 40 variedades. Esperamos que o Brasil se prepare para fazer testes clínicos na população brasileira com esses extratos liberados. O Conselho Federal de Medicina limita muito a prescrição de compostos enriquecidos com CBD, restringindo isso apenas a pacientes epilépticos com idade inferior a 18 anos.

A Anvisa tem, hoje, cerca de 2 mil liberações de importação de produtos com CBD para várias aplicações – dor, epilepsia, doenças neurológicas –, fora das especificações do CFM. E não temos testes clínicos protocolados ainda sobre esses usos, chamados de usos compassivos, relativos a pacientes que já experimentaram outras opções terapêuticas, sem resultado, e conseguem, sob essa alegação, validar suas prescrições e as importações. Precisamos muito dos estudos clínicos, para termos produção nacional.

Pede-se evidência científica para muitas coisas, mas para proibição de drogas, não.

A comunidade médica tem enorme preconceito quanto ao uso da maconha, mesmo com fins medicinais. É um problema cultural. Na década de 1930, no Brasil e nos Estados Unidos, houve uma demonização da maconha, sem qualquer base científica, médica. Uma atitude recheada de preconceito, uma vez que a maconha era usada principalmente por negros recém-libertos,  com suas manifestações culturais também proibidas – como macumba, capoeira, samba. A maior parte essas proibições foi caindo ao longo do século XX, mas a da maconha persistiu. Na década de 60, tem-se uma proibição da planta em nível internacional, ao lado do ópio, da papoula e da coca. Ao longo do tempo, outras também foram proibidas. Pede-se evidência científica para muitas coisas, mas para proibição de drogas, não. É um preconceito.

Como ocorre com qualquer substância, o uso abusivo pode trazer problemas à saúde, e certamente a maconha não está livre disso. A cenoura, por exemplo, é um alimento que pode vir a gerar vício, levando a uma impregnação do carotenoide e deixando a pessoa toda amarela e em risco de ter doenças neurológicas. A maconha tem nível de dependência semelhante ao da cenoura e pode levar a problemas cognitivos. Mas vendo os trabalhos que avaliam os efeitos da maconha na população, verificamos que nenhum estudo até hoje preocupou-se em controlar o efeito da própria proibição sobre o usuário, nenhum estudo avaliou, por exemplo, os níveis de pesticidas e contaminantes na maconha consumida, que podem ter consequências importantes nos resultados encontrados.

Não se estuda a maconha, exatamente; os estudos são feitos com a maconha proibida, obtida no mercado negro, e com os usuários sob os efeitos da proibição. Não é levado em conta o ambiente de criminalização ao qual o usuário de maconha ilegal é exposto. O estresse, a marginalização, a vulnerabilidade social, a falta de acesso a informação sobre a planta, podem produzir efeitos adversos, que não são controlados. A maconha usada por um adolescente em grande quantidade, pode estar levando-o a consumir também agrotóxico em grande quantidade, fungos em grande quantidade, que acabam considerados como evidências negativas do uso da planta na forma recreativa. São muitas variáveis. No entanto, fala-se em proibir, sem avaliá-las.

Não se estuda a maconha, exatamente, mas a maconha proibida, obtida no mercado negro (…) Não é levado em conta o ambiente de criminalização ao qual o usuário de maconha ilegal é exposto.

Como, agora, alguns estados americanos permitem algum controle de qualidade da maconha, começamos a conhecer resultados de estudos com essa maconha semilegalizada. Um estudo clínico de 2015, um dos trinta e poucos rigorosamente controlados (com a maconha planta propriamente dita há uns quatro ou cinco estudos; os outros são com canabinoides separados, ou sintéticos), mostrou que os efeitos adversos são numerosos, mas todos de baixa intensidade – tontura, sono, alguma descoordenação, insônia. São efeitos de pouca relevância.

A proibição em certos lugares,como no Brasil, é muito eficiente. Na Austrália, por exemplo, o consumo de maconha é mais de dez vezes maior do que aqui. Cerca de 30% da população já consumiram ou consomem com alguma regularidade. No Brasil, fala-se em 8% – e, em alguns estudos, em 4% – o que mostra que temos a proibição funcionando razoavelmente, pelo menos a partir desses questionários populacionais. Então, se legalizarmos, é possível que o consumo aumente. E para níveis australianos, no máximo. Não dá para dizer que a liberação não aumentará o consumo.

Em alguns estados americanos em que a maconha foi regulamentada não se viu um aumento de consumo, pois este já era elevado. Nesse caso, não se vê aumento importante, nem entre os adolescentes. Em países como nosso, em que a proibição tem efeito acentuado e há demanda reprimida, é possível que tenha aumento. Mas isso não quer dizer que haja aumento também de problemas advindos do consumo. Se a maconha for regulamentada, aumenta-se o controle de qualidade, o controle da distribuição. Haverá consumo mais seguro.

Ter muita gente consumindo não quer dizer ter mais problemas decorrentes desse consumo

Na Austrália, em 2007, foi realizado estudo de carga de doenças (burden of deseases), avaliando-se o custo gerado pelo uso de drogas sobre a saúde pública. São levados em conta dias de ausência ao trabalho, performance, internação, atendimento médico. Verificou-se que o resultado, em um país que tem consumo dez vezes maior que o do Brasil, é de baixa carga de doenças na população: 0,2%. O efeito relativo a álcool, que tem consumo parecido com o do Brasil, chega a 10%; o do cigarro tem percentual ainda maior. Muitos médicos proibicionistas vêm com o argumento de que o aumento do consumo levará necessariamente a aumento de problemas. Os problemas que advêm do uso da maconha parecem estar muito mais relacionados ao fato de ela ser proibida, estar contaminada com agrotóxicos e usada marginalmente. Quem afirmar que o aumento do consumo levará a aumento de problemas, fará isso sem argumento científico, sem evidências.

Para que medicamentos à base de canabidiol sejam produzidos no Brasil é necessária a descriminalização urgente da maconha.

A planta tem que deixar de ser proscrita. Temos que abandonar o sistema de prevenção pela proibição. A maconha é uma planta medicinal histórica, e como com toda planta medicinal, é direito do ser humano ter acesso a ela. Uma pessoa pode plantar, colher e usar, é direito seu. Não é preciso prescrição para fazer chá de quebra-pedra, para usar sucupira. Você pode ir ao médico e relatar esse uso, e o médico pode orientar. Mas não proibir! É preciso descriminalizar para que todos tenham acesso à planta, sem necessidade de prescrição, e acesso a acompanhamento médico.

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“A comunidade médica tem enorme preconceito quanto ao uso da maconha, mesmo com fins medicinais” diz João Menezes Foto: (Peter Iliciev/CCS/Fiocruz)

É preciso descriminalizar para que todos tenham acesso à planta, sem necessidade de prescrição, e acesso a acompanhamento médico.

Comparo o acesso à maconha com o acesso aos diferentes meios de transporte. Usar a planta é como caminhar, andar de bicicleta – todos têm acesso, é uma escolha individual. Já sob a forma de fitomedicamento, produzido por um laboratório privado, ou instituição pública, é necessário controle rígido, pois deve ser oferecido de forma confiável, com segurança. A prescrição médica é necessária, assim como a regulamentação da Anvisa; o médico precisa ter certeza de que aquele o medicamento mantém as mesmas características sempre e produz os efeitos esperados. E como ter acesso a um transporte público, um ônibus. E finalmente, os extratos de maconha e seus compostos seriam os transportes interplanetários, medicamentos de alta tecnologia. Isso ainda vai demorar anos, pois é preciso descriminalizar, fazer os testes todos, verificar segurança, eficiência. São anos de pesquisa.

No entanto, para as pessoas que estão sofrendo agora, neste momento, basta a descriminalização. Imediatamente tem-se acesso médico e acesso à planta em sua forma segura. Então: descriminalização imediata, o mais rápido possível, e, mais tarde, as etapas de regulamentação e de produção do medicamento fitoterápico, da qual a Fiocruz está participando. A prescrição médica precisa de regulamentação. Para a planta, para essas famílias que estão produzindo, basta a descriminalização.

*Fonte: (Comentário a Daiane Batista/CEE-Fiocruz)

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