Ayahuasca: um mergulho nas águas profundas do inconsciente

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Ayahuasca: Um mergulho nas águas profundas do inconsciente

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Por André Castilho

Só se constrói uma sociedade melhor passando pela desconstrução do próprio eu. Esta é a proposta da medicina indígena ancestral ayahuasca: oferecer um mergulho nas águas profundas do inconsciente – onde moram os sofrimentos que alimentam nossa infelicidade – para trazer à tona indivíduos mais conscientes e conectados com sua essência e com a natureza.

Também chamada de rainha, vegetal ou daime, a ayahuasca é resultado de um complexo cozimento das folhas do cipó jagube e do arbusto chacrona, nativos da Amazônia. Foram os seringueiros Mestre Irineu e Mestre Gabriel que, no início do século XX, trouxeram para a civilização ocidental moderna o chá que há quatro milênios vem sendo consumido pelos povos andinos e amazônicos. De lá para cá, a bebida sagrada já foi condenada por colonizadores e pela Santa Inquisição e, hoje, resiste bravamente aos nossos tabus.

É raso limitar os efeitos da ayahuasca aos sintomas físicos observados por quem está do lado de fora da experiência: alucinações, mal estar gastrointestinal, alteração das funções motoras. Por trás deste véu de pré-conceitos estão experiências sensoriais tão pessoais e com tanta margem de interpretação, que seria imprudente mencioná-las fora do contexto de um ritual. O fato é que, seja dentro de uma tribo ou de um laboratório científico, praticamente todos que têm contato com o DMT – a molécula presente na ayahuasca – experimentam as “mirações”, que fornecem uma visão bem clara daquele lado obscuro da personalidade que somos ensinados a enfiar debaixo do tapete, e que uma hora transborda em forma de distúrbios psíquicos ou físicos, drenando nosso potencial de sermos o que viemos ser.

 

As mirações são como um livro ilustrado da própria vida, em que se é possível percorrer por páginas abertas aleatoriamente, acessando capítulos e parágrafos que normalmente gostaríamos de pular. Através de memórias, símbolos e códigos fractais, o paciente tem a oportunidade de lidar com as questões mais profundas de seu ser. Cabe a ele escolher como quer encarar as questões que se apresentam: aceitando-as e, consequentemente, abrindo novas portas de percepção que o levarão ao perdão, à auto-aceitação, à libertação de culpas, medos e traumas; ou negando-as, o que vem a tornar a experiência quase que insuportável: é quando ocorre a temível “peia”.

A grande diferença da ayahuasca para qualquer outro tratamento terapêutico, é que ela funciona como um atalho para se chegar mais rápido ao ponto. Uma só sessão pode equivaler a anos de meditação ou de terapia. E por isso mesmo, tem se tornado cada vez mais comum terapeutas tradicionais quebrando o tabu da profissão e recomendando o uso de ayahuasca aos seus pacientes – eles próprios têm feito uso da medicina. Existem dezenas de estudos científicos que comprovam a eficácia da ayahuasca na recuperação de quadros depressivos, dependência química e distúrbios de comportamento.

 

Nos círculos ayahuasqueiros, também são comuns os testemunhos de curas de doenças físicas. Segundo a sabedoria indígena, quase todas as doenças são resultado de uma questão interior que foi negligenciada ao longo da vida, e que condensou-se na densidade da matéria, acarretando na doença, que nada mais é que um aprendizado. A dor é um lembrete de que há algo a ser trabalhado, que não pode mais ser ignorado. E é aí que entra a medicina da ayahuasca, levando o paciente para além dos sintomas, até a origem da doença, dando a oportunidade para que ele desfaça os nós atados. É o que algumas vertentes da ciência vêm chamando de cura quântica – e que pode ser acessada por outros canais, como meditação ou medicina oriental, por exemplo.

O “marketing” boca-a-boca de pacientes e o recente interesse da ciência pelo DMT, somados aos documentários e reportagens sobre o chá, têm acelerado a disseminação da bebida, hoje utilizada por igrejas, grupos xamânicos, clínicas de recuperação e até mesmo no sistema prisional (como o caso da ONG Acuda, em Rondônia, que recupera e ressocializa presidiários por meio de terapias com a substância). E se antes a bebida era consagrada apenas na floresta, hoje ela está também nos centros urbanos. A popularização da medicina tem seu preço: abriu margem para pseudo-gurus e charlatões, que tiram vantagem do poder do chá para manipular pessoas ou criar seitas voltadas a seu próprio benefício. Além disso, por imprudência ou despreparo, alguns líderes de centros ayahuasqueiros acabam por ignorar os cuidados exigidos pela substância, como, por exemplo, sua restrição absoluta a esquizofrênicos, por seu potencial em agravar o quadro da doença, resultando em histórias que podem ter fins trágicos. Tudo isso dá margem e fomento para os ataques dos setores conservadores da sociedade, influenciados pela parcialidade da mídia, em boa parte bancada pelas grandes farmacêuticas (o que rende uma reflexão à parte).

Existe muita literatura e documentários que elucidam melhor o tema, tanto do aspecto científico e terapêutico quanto cultural. No Brasil, ao contrário de muitos países, o uso da ayahuasca é permitido, desde que dentro de um contexto religioso. Portanto, se você tem interesse em saber mais sobre o chá e seus efeitos terapêuticos, o melhor canal é entrar em contato com grupos que fazem o uso responsável da bebida. Mas antes de consagrá- lo, faça uma profunda reflexão. Tenha consciência de que você vai ter acesso a um “eu” que talvez não corresponda à imagem que você tenha de si. A tendência do ego é espernear ao ser confrontado e desconstruído. Ao tomar o chá, você pode não ter controle sobre este processo. Além disso, durante o efeito da substância, você fica vulnerável. Certifique-se de estar em um local seguro e de confiança, com pessoas que possam auxiliá-lo em qualquer necessidade. E, o mais importante: respeite a medicina.

 

A ayahuasca é apenas uma das muitas ferramentas disponíveis para nos levar até a ponte que nos conecta à nossa essência. Para atravessá-la, é preciso ter a coragem de nos livrarmos dos sapatos e pisarmos descalços nas pedras e espinhos que deixamos em nosso próprio caminho. Quando cada um de nós tivermos chegado do outro lado, vamos perceber que, juntos, demos um passo à frente enquanto humanidade. [Via: Storia.me]

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