O intrigante sequestro que talvez tenha obstruído o avanço da energia solar no início do século passado
Uma das justificativas frequentemente levantadas em defesa dos combustíveis fósseis reside na ideia de que, durante a maior parte do século 20, não existiam alternativas viáveis para a geração de energia.
Consequentemente, há quem afirme que devemos gratidão aos combustíveis fósseis por terem impulsionado nosso progresso.
Entretanto, o que aconteceria se eu lhe dissesse que uma alternativa viável poderia ter sido prejudicada desde o início por interesses da indústria de combustíveis fósseis?
Em minha pesquisa sobre a viabilidade econômica das inovações no setor de energia limpa, deparei-me com uma história pouco conhecida: a de George Cove, um inventor canadense pioneiro no campo das energias renováveis.
Cove desenvolveu painéis solares domésticos em 1905, notavelmente semelhantes aos instalados nas residências atuais, inclusive incorporando uma rudimentar bateria para armazenar energia quando o Sol não brilhava.
Surpreendentemente, isso não ocorreu nos anos 1970, nem mesmo na década de 1950, mas no distante ano de 1905.
A empresa de Cove, a Sun Electric Generator Corporation, com sede em Nova York, ostentava um capital de US$ 5 milhões (equivalente a cerca de US$ 160 milhões ou R$ 810 milhões nos valores atuais).
A ideia dos painéis solares já chamava a atenção da imprensa em 1909, quando a revista americana Modern Electrics destacava que “em dois dias de sol… [o aparelho] armazenaria energia elétrica suficiente para iluminar uma casa comum por uma semana.”
A reportagem salientava que a energia solar acessível poderia desembaraçar as pessoas da pobreza, proporcionando luz, calor e energia a custos acessíveis e aliviando a luta constante pela sobrevivência.
A reportagem ainda especulava sobre como até os aviões poderiam ser alimentados por baterias carregadas pelo Sol, oferecendo um vislumbre de um futuro com energia limpa para quem desejasse usufruir.
Interesses ocultos?
Entretanto, em 19 de outubro de 1909, segundo o jornal The New York Herald, um evento incomum ocorreu: George Cove foi sequestrado.
Sua libertação estava condicionada a que ele renunciasse à sua patente de energia solar e fechasse sua empresa. Cove resistiu, mas acabou sendo solto nas proximidades do Zoológico do Bronx, em Nova York.
Após esse incidente, os empreendimentos de Cove no setor de energia solar fracassaram. Um desdobramento intrigante, especialmente porque nos anos que antecederam o sequestro, ele havia aprimorado continuamente seu dispositivo solar.
Não posso afirmar categoricamente se houve interesses ocultos em jogo.
Naquela época, algumas pessoas acusaram Cove de ter forjado o sequestro em busca de publicidade. Porém, essa explicação não faz sentido, considerando a considerável atenção da imprensa voltada para sua invenção.
Outras fontes sugerem que um antigo investidor pode ter desempenhado um papel no incidente.
O que sabemos com certeza é que as jovens empresas no ramo de combustíveis fósseis muitas vezes recorriam a práticas antiéticas para eliminar a concorrência.
A energia solar representava uma ameaça, dado que é uma tecnologia naturalmente democrática – afinal, todos têm acesso ao Sol – que poderia empoderar indivíduos e comunidades. Em contraste, os combustíveis fósseis exigem a construção de impérios corporativos.
A Standard Oil, liderada por John D. Rockefeller, o primeiro bilionário do mundo, conseguiu eliminar a concorrência de maneira implacável, levando o governo dos Estados Unidos a implementar leis antitruste para combater os monopólios.
Da mesma forma, o lendário inventor Thomas Edison eletrocutou cavalos, animais de criação e até mesmo um ser humano na cadeira elétrica com o uso da corrente alternada de seu rival, Nikola Tesla, tudo para destacar os perigos da corrente alternada em prol de sua própria tecnologia, a corrente contínua.
A empresa Sun Electric, de propriedade de Cove, com seus painéis solares autossuficientes, teria ameaçado os interesses de Edison, que planejava estabelecer uma rede elétrica baseada no uso de carvão.
Após o sequestro de Cove, houve esforços isolados para desenvolver a energia solar, mas quatro décadas se passaram sem uma atividade comercial significativa até que a Bell Labs, o braço de pesquisa da Bell Telephone Company, nos Estados Unidos, retomou a ideia.
Enquanto isso, os setores de carvão e petróleo experimentaram um crescimento sem precedentes, impulsionados por políticas governamentais e financiamento público. A crise climática, possivelmente, já estava em andamento.
Quatro décadas perdidas
Ao descobrir a história de George Cove, surge a pergunta: o que a humanidade perdeu durante esses 40 anos? Para explorar essa questão, realizei um exercício intelectual.
Utilizei o conceito conhecido como a Lei de Wright, que se aplica a muitos recursos renováveis. Essa lei sugere que, à medida que a produção aumenta, os custos diminuem devido às melhorias e ao aprendizado no processo.
Apliquei esse conceito para calcular quando a energia solar poderia ter se tornado mais econômica do que o carvão. Para isso, considerei um cenário em que a energia solar cresceria modestamente de 1910 a 1950. E a estimativa de quanto tempo esse ‘período de aprendizado’ adicional teria impactado os custos.
Em um mundo onde Cove tivesse sucesso e a energia solar competisse com os combustíveis fósseis desde o início, a eletricidade solar teria superado o carvão em 1997, quando Bill Clinton era presidente dos Estados Unidos e as Spice Girls estavam em seu auge.
Na realidade, isso só ocorreu em 2017.
Século Alternativo
Naturalmente, essa estimativa parte do pressuposto de que o sistema energético permaneceria inalterado. A realidade pode ter sido muito diferente caso a energia solar estivesse disponível em 1910 e não tivesse sido prejudicada.
Poderia ter havido mais investimento em pesquisas de baterias para apoiar a descentralização da energia solar, por exemplo. Nesse cenário, a rede elétrica e as ferrovias usadas para sustentar a economia baseada no carvão teriam recebido menos atenção.
Alternativamente, avanços mais recentes na industrialização poderiam ter impulsionado a energia solar, tornando o trabalho de Cove menos relevante.
Em última análise, é impossível prever exatamente como a história teria se desenrolado. Mas é seguro afirmar que eliminar 40 anos de atraso no desenvolvimento da energia solar poderia ter poupado consideráveis quantidades de emissões de carbono.
Embora possa ser angustiante refletir sobre esses ‘e se’ enquanto observamos as condições climáticas se deteriorarem ao nosso redor, essa análise oferece uma lição valiosa: a produção de energia solar não é uma ideia radical ou recente. É uma ideia tão antiga quanto as próprias empresas de combustíveis fósseis.
A predominância dos combustíveis fósseis no século 21 não foi inevitável; foi uma escolha que poucos de nós tiveram a oportunidade de influenciar.
Os combustíveis fósseis prevaleceram inicialmente devido à falta de conhecimento sobre seu impacto ambiental e, posteriormente, devido ao poderoso lobby que resistiu a mudanças.
A boa notícia é que a energia solar agora fornece a eletricidade mais acessível que já vimos. Com custos em constante declínio à medida que o desenvolvimento continua. Quanto mais rápido abraçarmos essa tecnologia, maior será a economia.
Se adotarmos o espírito otimista da época de Cove e tomarmos as decisões tecnológicas adequadas, ainda é possível criar o mundo abastecido pela energia solar que ele imaginou tantos anos atrás.
* Sugandha Srivastav é pesquisadora de pós-doutorado em economia ambiental da Academia Britânica na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
A publicação original deste artigo está disponível no site de notícias acadêmicas The Conversation e a republicação se dá sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.