Atualmente, um dos pontos turísticos mais conhecidos de SP abriga um passado escravista que permanece oculto.
Entre barracas de sushi, jovens trajados de personagens de anime e postes de iluminação com lanternas japonesas, a praça da Liberdade, em São Paulo, tem uma única homenagem à história da população negra: uma estátua da sambista Madrinha Eunice.
Ela celebra a matriarca que, aos 12 anos, veio do interior e fundou a Lavapés, uma das mais antigas escolas de samba da cidade.
Porém, essa é a única referência visível à história dos negros e indígenas no local.
Antigo Campo da Forca
Sendo assim, não há indícios de que ali, antes conhecido como Campo da Forca, ocorressem execuções de condenados à morte por mais de um século, entre 1765 e 1874.
Muitos dos condenados eram escravizados que tentaram rebelar-se ou fugir. José Crioulo e João Congo, executados em 1821, tiveram suas cabeças exibidas em cidades do interior paulista após serem enforcados ali. Além disso, quem não teve o corpo brutalmente mutilado era enterrado no cemitério da Capela dos Aflitos, a poucos metros da praça.
Atualmente, movimentos buscam destacar a história negra na região, apelidada de ‘bairro japonês‘, que se tornou um dos pontos turísticos mais importantes da cidade.
No entanto, essa ênfase na cultura japonesa serviu para esconder o histórico escravagista da cidade, explica o historiador Wesley Vieira, pesquisador na Universidade de São Paulo (USP).
‘São Paulo apagou sistematicamente as camadas da escravidão, criando uma narrativa de que foi fundada pelos bandeirantes e jesuítas, desenvolvendo-se graças aos imigrantes’, diz Vieira.
‘A ideia foi criar símbolos para validar essa narrativa e negar o passado de desumanização das pessoas escravizadas.’
Outro exemplo dessa valorização dos imigrantes, além da Liberdade, é a identificação do Bixiga com a comunidade italiana, ressalta o pesquisador.
‘Essa força dos imigrantes é importante, mas essa narrativa encobriu os registros da São Paulo escravagista’, afirma Vieira.
Apagamento histórico
Esse apagamento foi tão eficaz que é difícil encontrar marcos da história dos negros e indígenas nos períodos colonial e escravocrata de São Paulo.
A Capela dos Aflitos, alvo de movimentos sociais que lutam por sua renovação e preservação, é crucial por ser um resquício desses tempos, segundo Vieira.
Durante quase 20 anos, a igreja foi o ponto de encontro da Marcha Noturna pela Democracia Racial, iniciada em 1997 pelo movimento negro, que passava por alguns desses marcos.
Na época colonial e do Império, a área onde hoje está a Liberdade abrigava instrumentos de opressão do Estado. O pelourinho, onde negros e indígenas escravizados sofriam torturas, ficava a poucos metros, onde hoje é a praça do Tribunal de Justiça.
Após a desativação do cemitério da capela, inúmeros prédios foram cercando a construção à medida que a Igreja Católica vendia os lotes de terra.
Com aluguéis acessíveis, a região se tornou moradia para a população pobre, negra e indígena, além de ser rota de fuga para quilombos que ficavam onde hoje é São Paulo.
‘Esse lugar tem uma presença indígena e negra para além dos equipamentos de tortura do Estado. É um local onde a resistência dessas populações pode ser manifestada diante do desenvolvimento da cidade’, ressalta o historiador.
A área também foi refúgio para imigrantes japoneses, que buscavam aluguéis mais em conta.
A transformação do bairro em ponto turístico começou nos anos 1970, quando já recebia mais coreanos e chineses do que japoneses. Em 1973, o bairro ganhou decoração imitando lanternas japonesas, ainda presentes, conta Vieira.
Em 1974, a Secretaria de Turismo planejou criar uma ‘Little Tokyo’, impulsionando a transformação do bairro em ponto turístico.
‘Foi um processo turístico-mercantil, sem uma base identitária genuína para valorizar a ancestralidade japonesa. Sempre foi uma imagem fictícia com objetivos econômicos.’
Críticas e resistência
Movimentos de descendentes de japoneses criticam não apenas a omissão dos chineses e coreanos nessa caracterização, mas também como a luta dos imigrantes japoneses invisibilizou a história da população negra.
O movimento negro, há anos, reprova a transformação da Liberdade em ponto turístico sem lembrar dos negros e sem aproveitar o potencial educativo da Capela dos Aflitos.
Enquanto isso, a Capela dos Aflitos se mantém como ponto de peregrinação, sendo palco de um ritual em homenagem a Francisco José das Chagas, conhecido como Chaguinhas.
Chaguinhas, soldado negro, liderou uma revolta por salários atrasados. Após sua condenação à morte, o executaram brutalmente em São Paulo em 1821.
‘Não podemos entender essa revolta como parte da luta pela independência, mas hoje podemos vê-la como uma busca por direitos, até mesmo trabalhistas’, diz Vieira.
A execução de Chaguinhas e seus colegas levou a população a pedir clemência, que mesmo assim, não houve.
‘A população pediu por clemência’, aponta o pesquisador. ‘Uma das hipóteses do nome Liberdade tem relação com essa história, mas não há registro oficial disso.’
Para não esquecer
Em 2018, a descoberta de nove ossadas humanas ao lado da igreja levou à desapropriação do terreno e à proposta de construir um Memorial dos Aflitos.
No entanto, o escritório vencedor do projeto desistiu após polêmica envolvendo uma arquiteta e movimentos sociais.
Assim, a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca) critica o projeto por não respeitar a história e o local das ossadas.
Enquanto a Prefeitura defende a escolha dos projetos conforme o edital, movimentos buscam alterar o concurso para incluir arquitetos negros na elaboração do projeto.
Enquanto isso, a Unamca arrecada fundos para o restauro da Capela, não previsto no edital da Prefeitura.
‘A valorização da cultura popular é essencial para não encobrir essa história’, ressalta Alves.
Via: BBC News Brasil