Atualmente, o novo alvo de pesquisas para a cura do câncer é a electroma: a rede elétrica do corpo humano.
Explicando de modo simples a electroma ou bioeletricidade é um tipo de rede bioelétrica que faz os organismos funcionarem. É um sistema fundamental para a vida, não só dos seres humanos, mas também das plantas e de outros animais.
Nas últimas décadas, muitas pesquisas científicas que tentaram desvendar o funcionamento do corpo humano concentraram-se em estudar três sistemas principais: o genoma, o proteoma e o microbioma.
O genoma é a sequência de DNA que todo organismo possui e contém sua informação genética completa. Já o proteoma é o conjunto de proteínas fabricadas pelos genes – os “tijolos essenciais” da vida. E o microbioma é o ecossistema de micro-organismos que vivem no corpo e são fundamentais para a saúde.
Começa agora a aumentar o interesse por outro sistema que é fundamental para a vida, não só dos seres humanos, mas também das plantas e de outros animais. A rede bioelétrica que faz os organismos funcionarem. Alguns cientistas começaram a chamá-la de “electroma”.
Nós somos elétricos
“Assim como os sinais elétricos sustentam as redes de comunicação do mundo, estamos descobrindo que eles fazem o mesmo no nosso corpo: a bioeletricidade é a forma em que as nossas células se comunicam entre si”. Explica em um artigo no site da organização britânica Nesta a divulgadora científica Sally Adee, especialista neste campo e autora do livro We Are Electric.
Algumas pessoas atribuem a Adee a criação do neologismo “electroma”. Ela afirma que “não podemos subestimar a forma total e absoluta em que todos os seus movimentos, percepções e pensamentos – e os meus – são controlados pela eletricidade”.
Ela destaca que compreender o electroma é fundamental porque, se interviermos no processo bioelétrico do corpo, poderemos “consertá-lo quando houver algo de errado, seja por trauma, defeitos de nascimento ou câncer”.
Como funciona a rede bioelétrica ‘electroma’
O professor emérito de biologia do câncer Mustafa Djamgoz, do Imperial College de Londres, é um dos primeiros cientistas a aplicar a bioeletricidade no tratamento desta doença.
Djamgoz também leciona neurobiologia na mesma universidade e estuda os processos bioelétricos do corpo há décadas. Desde 2019, ele é coeditor-chefe de Bioelectricity, a única revista científica dedicada a este campo.
Mas, antes de entender como usar a bioeletricidade para tratar do câncer, a BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – pediu a Djamgoz que explicasse o que é essa corrente e como ela é gerada dentro do nosso corpo.
“Todos os elementos que temos no nosso corpo, como o sódio, potássio, cálcio, magnésio e zinco, passam por uma reação química que causa a separação dos seus átomos, formando o que se conhece como íons, que são partículas eletricamente carregadas”, explica o professor.
“Os fluidos do nosso corpo estão repletos destes íons. Os de carga oposta se atraem e os que possuem a mesma carga se repelem”, prossegue ele. “E, quando circulam pelo nosso corpo, eles geram uma corrente.”
Djamgoz ressalta que é uma corrente com potência muito baixa: apenas 70 milivolts. Como termo de comparação, uma pilha AA comum tem 1,5 mil milivolts. Mas a bioeletricidade do corpo é fundamental para seu funcionamento, segundo ele, já que é através desses sinais elétricos que as diferentes partes do corpo se comunicam.
Lei fundamental
Djamgoz destaca que a rede bioelétrica do corpo funciona sob os mesmos princípios fundamentais aplicados a qualquer circuito elétrico, incluindo a lei de Ohm, que estabelece que a tensão é igual à corrente, multiplicada pela resistência.
A grande diferença é que, enquanto a eletricidade tradicional se move ao longo do núcleo condutor dentro de um cabo, a bioeletricidade é gerada por íons que fluem através da membrana celular (a cobertura).
Como a membrana tem função de vedação, os íons, para penetrar na célula, devem atravessar uma espécie de comporta – proteínas chamadas de “canais iônicos”, incrustadas na membrana. Quando os íons fluem por esses canais, produz-se a condução elétrica.
Para o especialista, é um paradoxo que o sistema bioelétrico tenha sido muito menos estudado que outros sistemas que regem o corpo, como o genoma, já que sua compreensão apresenta muito menos dificuldade.
“Temos 22 mil genes e cada pessoa tem uma composição genética diferente. Por isso é que temos medicina personalizada”, segundo ele. “Mas, na bioeletricidade, existe uma única lei fundamental, aplicada a todos.”
Djamgoz também destaca que todas as células e tecidos do nosso corpo – neurônios, nervos, músculos, cartilagens, intestino etc. – utilizam o mesmo processo para se comunicar.
“Quando pensamos nas propriedades elétricas do corpo, pensamos em primeiro lugar no cérebro, no coração e nos músculos, mas a realidade é que até os micróbios do nosso intestino, o sistema imunológico e as células cancerígenas geram sinais elétricos”, afirma ele.
Para o professor, “a bioeletricidade realmente é uma das forças ou mecanismos mais fundamentais da natureza”.
A electroma e o desenvolvimento do câncer
Voltando à aplicação da bioeletricidade para impedir o avanço do câncer, o tratamento revolucionário desenvolvido por Djamgoz está relacionado com a forma de transmissão dos sinais elétricos dentro do corpo.
Já mencionamos que, para entrar e sair das células, os íons (átomos com carga elétrica) utilizam canais iônicos, que são proteínas presentes nas membranas celulares. Elas funcionam como comportas – quando elas se abrem, o íon pode passar.
No caso do câncer, que é basicamente uma doença que ocorre quando as células crescem e se propagam de forma descontrolada, o professor explica que esses canais iônicos desempenham papel fundamental, já que “são eles que controlam a proliferação e a migração das células”.
Graças às pesquisas iniciadas pelo especialista na década de 1990, ele e sua equipe descobriram um dado revelador: as células cancerígenas ficam agressivas – ou seja, elas tendem a se multiplicar e propagar – quando são “eletricamente excitáveis”.
“As células cancerígenas geram um zumbido de atividade elétrica e isso as torna hiperativas”, explica Djamgoz.
Este dado é muito importante, segundo o professor, porque “o problema do câncer não é ter um tumor. Você pode viver com um tumor, desde que seja local. O problema aumenta quando o câncer se propaga, em um processo que chamamos de metástase.”
Djamgoz descobriu que a chave para interromper esse crescimento hiperativo é fechar as comportas elétricas das células – ou seja, bloquear os canais iônicos, mais especificamente os canais de íons de sódio, que são os responsáveis por causar a “excitação eletrônica” que promove o crescimento do câncer.
Utilizando produtos farmacêuticos para bloquear esses canais, o professor conseguiu interromper a proliferação e a propagação de células cancerígenas em animais. Seu próximo desafio é realizar testes em seres humanos, o que é um processo muito mais complexo.
Mas ele defende que já tem indícios de que a técnica também poderá funcionar em pessoas.
O especialista em ciências biomédicas William Brackenbury, da Universidade de York, no Reino Unido, é ex-estudante de doutorado de Djamgoz. No final de 2022, ele publicou os resultados de um estudo epidemiológico que analisou informações de 53 mil pacientes com câncer de três tipos: mama, próstata e cólon.
Cerca de 150 desses pacientes também tinham angina crônica, uma doença coronariana que é tratada utilizando um medicamento chamado ranolazina, que bloqueia os canais de íons de sódio em condições de baixo nível de oxigênio, que também são produzidas nos tumores em crescimento.
O estudo demonstrou que as pessoas que tomaram o bloqueador sobreviviam, em média, por 60% mais tempo que os demais pacientes de câncer que não estavam tomando esse produto.
“Medicamentos como a ranolazina podem transformar os cânceres agressivos em estado benigno, ou seja, sem metástase, permitindo que os pacientes vivam com o câncer de forma crônica, como o diabetes”, segundo o especialista. “Isso também elimina os efeitos secundários tóxicos e indesejáveis de tratamentos como a quimioterapia.”
Djamgoz patenteou seu tratamento contra o câncer usando o bloqueador de canais de íons de sódio em vários países, incluindo o Reino Unido, Japão, Canadá, Austrália e Estados Unidos.
Outros usos médicos
Mas a bioeletricidade não tem potencial apenas para a cura do câncer. A mesma “excitação eletrônica” que faz com que as células cancerígenas se multipliquem pode ser usada com outro objetivo positivo: a cura de feridas.
Sally Adee explica que já foi descoberto que as células da pele “geram um campo elétrico quando são lesionadas”.
“A corrente da ferida chama o tecido vizinho, atraindo ajudantes como agentes curativos, macrófagos para limpar a desordem e células reparadoras de tecido de colágeno, chamadas fibroblastos”, explica ela.
Em 2012, o cientista Richard Nuccitelli conseguiu medir a corrente elétrica das feridas e concluiu que ela aumenta quando há a lesão, é reduzida à medida que a ferida sara e volta a ser indetectável quando a cura está completa.
Adee também descobriu que as pessoas cuja corrente de tensão era fraca curavam-se mais lentamente do que aquelas cuja corrente de lesão era “mais forte”. Além disso, a força da corrente da ferida é reduzida com a idade, emitindo um sinal com a metade da força nas pessoas maiores de 65 anos, em relação aos menores de 25 anos de idade, segundo detalha a especialista no seu artigo.
Esta descoberta levou alguns cientistas a tentar estimular a eletricidade natural do corpo para acelerar a cura de feridas.
Dois estudos publicados na última década sobre o tratamento de uma das feridas mais difíceis de curar (as escaras, que afetam principalmente as pessoas acamadas), demonstraram que o estímulo elétrico “quase duplicou sua taxa de cura”. Argumentou Adee, mencionando os trabalhos de Koel e Hoghton, em 2014, e de Girgis e Duarte, em 2018.
A divulgadora científica destaca que existem até evidências de que a mesma técnica pode acelerar a cura de ossos fraturados.
Por que não é utilizada?
A grande pergunta é: se já existem pesquisas que demonstram que a bioeletricidade do corpo pode ser alterada para ajudar na nossa cura, por que os médicos não estão aplicando estas técnicas?
Djamgoz aponta três motivos principais.
“Primeiro, a profissão médica é muito conservadora”, afirma ele. “Leva muito tempo para que as ideias mudem.”
“Se você pegar, por exemplo, o caso do câncer, nós ainda o tratamos usando quimioterapia, radioterapia e técnicas e métodos de tratamento que têm mais de 50 anos”, explica o professor.
Parte deste conservadorismo está relacionada ao fato de que “estamos lidando com a vida humana”, segundo ele, e existe medo de cometer erros. Mas, na prática, quando alguém quer testar “algo que está fora do convencional, a reação instintiva é se opor”.
“Um dos motivos por que não há mais pessoas assumindo riscos é que não existe financiamento. As pessoas querem se ater ao seguro”, destaca Djamgoz.
A segunda razão da falta de investimento neste campo é o fator comercial.
“As grandes empresas farmacêuticas que desenvolvem medicamentos caros não querem necessariamente este tipo de medicação, que é barata”, explica o especialista.
Já o terceiro e último motivo indicado pelo professor Djamgoz é mais curioso: para usar a bioeletricidade, é preciso conhecer um pouco de física. E de acordo com ele “o médico ou biólogo comum tem medo” desta disciplina científica.
“Existe quase que um preconceito… eles dizem ‘meu Deus, isso é física, não entendo’.”
Medo do desconhecido
Adee menciona um estudo de 2019, realizado pela Universidade Goethe, da Alemanha, e pela Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Tal estudo “concluiu que a ideia de que a eletricidade é relevante na biologia ainda é muito nova e contraria a intuição para que tenha ampla aceitação”.
“Até quando os médicos já ouviram falar, eles não sabem como usá-la”, destaca.
Dois dos cientistas que participaram deste estudo, que analisou os motivos por que poucos cirurgiões ortopédicos utilizam o estímulo elétrico para curar fraturas, “embora funcione tão bem”, concordaram com o professor do Imperial College sobre os dois primeiros motivos apontados por ele.
Mas a especialista russa em medicina regenerativa Liudmila Leppik e o cirurgião plástico e especialista em ortopedia argentino-americano John Barker afirmaram à BBC News Mundo que não acreditam que a falta de conhecimento dos médicos sobre física seja um dos problemas.
“Não acredito que nenhum de nós, médicos, compreenda profundamente os mecanismos de funcionamento de nenhuma das drogas que administramos aos pacientes e, mesmo assim, nós as administramos todos os dias”, afirma Barker, que trabalhou por décadas com estímulos elétricos e hoje é aposentado.
Já para Leppik, “o médico e o biólogo médio estudaram física na universidade e acredito que eles entendam os conceitos básicos da eletricidade. Mas eles também compreendem o pouco que sabem com relação às reações celulares à eletricidade.”
Neste sentido, o trabalho no qual ambos colaboraram mostrou que não existem diretrizes claras que especifiquem como utilizar a eletricidade em um consultório ou mesa de operações.
Também não está claro se deve ser usada corrente direta ou alternada, qual deve ser o tempo de aplicação e qual tensão deve ser empregada. E outro fator fundamental demonstrado pelo estudo é que ainda não existem ferramentas padronizadas para uso pelos médicos com seus pacientes.
‘Questão de tempo’
Apesar das limitações, os especialistas estão de acordo sobre o enorme potencial do campo da bioeletricidade.
Mustafa Djamgoz destaca que o financiamento desta área da ciência está crescendo. “É um dos principais desenvolvimentos que estão por acontecer. É apenas questão de tempo”, prevê o professor.
Já John Barker adverte que, embora o potencial seja inquestionável, a ciência não costuma avançar de forma linear.
Para ele, “a eletricidade serve para curar. Ponto. Existem muitas pesquisas que o comprovam.”
“Mas, 40 ou 50 anos atrás, também sabíamos que os carros eletrônicos tinham muitas vantagens e, mesmo assim, foi preciso chegar o maluco do Elon Musk, que brincou de investir nessa indústria, para mudar o status quo”, destaca Barker.
Fonte: Jornal Correio Braziliense – DF e BBC News Brasil