A aprovação de uso médico da substância MDMA nos EUA fará o setor decolar, prevê Marco Algorta, CEO da primeira rede brasileira de clínicas psicodélicas
Há poucos dias do final de 2023, o MDMA (sigla para metilenodioximetanfetamina), mais conhecido como ecstasy, deu mais um passo na direção da aprovação para uso terapêutico nos Estados Unidos.
Isso, porque no dia 12 de dezembro de 2023, foi protocolada uma requisição de novo medicamento com a droga para tratamento de TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) na FDA, a Anvisa americana.
Trata-se do primeiro pedido de medicamento para uma terapia assistida por psicodélicos. Apesar de proibida desde a década de 1980, a droga foi reclassificada pela agência americana em 2018 como breakthrough therapy (terapia inovadora).
Na opinião de especialistas, isso pode acelerar a análise e fazer com que a autorização para uso médico saia até o final de 2024. Mas e para o Brasil, o que isso representa?
“A aprovação do uso médico do MDMA nos EUA pode fazer o setor psicodélico decolar novamente”, disse em entrevista ao blog da Psicodelicamente, o empresário Marco Algorta, CEO das Clínicas Beneva, a primeira especializada em terapias com psicodélicos do Brasil. Segundo ele, o país será um dos grandes beneficiados por uma decisão favorável.
‘É um momento histórico para o uso dos psicodélicos na medicina’, comenta Algorta. Ele relembra que, na grande maioria dos países, a substância está inserida na lista 1, a categoria mais restritiva usada para classificar drogas de abuso e sem uso médico.
O empresário crê que uma decisão positiva nos EUA gere uma nova grande onda de interesse em torno do desenvolvimento do uso terapêutico desses compostos.
“O Brasil, como terceiro maior país em paper científico sobre psicodélicos, é um player relevante e vai poder absorver muito desse movimento”. Mas, ele reconhece que isso vai depender da capacidade do setor brasileiro de se unir, se proteger e saber entregar no momento certo.
Se o pedido de novo medicamento for aprovado pela FDA, estima-se que a terapia nos EUA poderá chegar a um pequeno número de pacientes no final de 2024 ou início de 2025.
Questionado sobre uma previsão de quando pacientes começarão a ser atendidos no Brasil, Algorta arrisca um palpite. “Acredito que seis meses após a aprovação nos EUA poderemos estar usando o MDMA aqui”. Ou seja, se tudo correr a favor, o empresário prevê que a terapia esteja disponível no país no segundo semestre de 2025.
“A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] tem um especial interesse em inovação na medicina e a agência sabe do potencial que o Brasil tem nesse campo”, comenta Algorta.
O executivo observa ainda que o país já possui ferramentas de importação para o uso compassivo (para tratamentos experimentais, quando não há outra abordagem terapêutica), o que facilita o acesso.
Mais de 30 anos de pesquisa
O pedido referente ao MDMA apresentado à agência americana prevê que a droga seja usada em combinação com psicoterapia e administrada por profissionais de saúde.
Se receber sinal verde da FDA, será a primeira terapia assistida por psicodélicos aprovada no país, disse Amy Emerson, diretora executiva da Maps Public Benefit Corporation, empresa responsável pelo requerimento, em um comunicado à imprensa.
“É o resultado de mais de 30 anos de pesquisa para trazer uma nova alternativa de tratamento para pacientes com TEPT”, comemora Amy.
O TEPT é uma condição de saúde mental que afeta aproximadamente 13 milhões de americanos a cada ano, segundo dados do governo dos Estados Unidos.
Além de os tratamentos disponíveis serem pouco eficazes, o TEPT tem um impacto anual na economia americana de mais de US$ 200 bilhões. Pessoas com o transtorno podem apresentar sintomas debilitantes que afetam quase todas as áreas da vida.
A Maps PBC, autora do requerimento à FDA, é o braço de desenvolvimento de medicamentos da Maps (sigla em inglês para Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos). A ONG, sediada na Califórnia, há mais de três décadas investiga o potencial terapêutico dos alucinógenos e reivindica a aprovação de usos em psicoterapia.
A Maps foi fundada em 1986 (um ano após a proibição do MDMA nos EUA) por Rick Doblin, um ex-hippie, especialista em políticas públicas e entusiasta ferrenho do uso terapêutico dos psicodélicos.
A terapia com MDMA, desenvolvida pela Maps, é um tratamento experimental que combina o uso da droga com psicoterapia para tratar o TEPT. Foram concluídos seis estudos clínicos de fase 2 e dois de fase 3. A ONG também apoiou uma pequena pesquisa realizada no Brasil em 2018, que teve a participação de três pacientes.
O fundador da Maps reconhece que ainda há desafios pela frente. ‘Temos muito trabalho a ser feito para tornar a cura psicodélica, de todos os tipos, uma realidade’, disse em comunicado na internet. Além de apoiar os usos em contextos médicos e religiosos, Doblin é um ativista contra a proibição dessas substâncias.
A aprovação do uso médico do MDMA será uma mudança de paradigma para a psiquiatria, disse ao site americano Lucid News, Jonathan Sporn, CEO da Gilgamesh, empresa de biotecnologia que investe no setor.
Segundo ele, outros programas de desenvolvimento de remédios começarão a olhar a importância da abordagem terapêutica combinada com psicodélicos. ‘A aprovação do MDMA pela FDA afetará uma ampla classe de medicamentos’, declarou Sporn.
As drogas psicodélicas têm se mostrado promissoras em ensaios clínicos. Combinadas com psicoterapia, apresentam potencial para tratar problemas de saúde mental como depressão, transtornos de ansiedade, dependência e traumas.
Mas, Sporn ressalta que mais pesquisas são necessárias. “Esperamos que a aprovação do MDMA traga mais financiamentos para a ciência.”
Era puro ‘ecstasy’
Os cientistas não consideram o MDMA um psicodélico clássico, como o DMT da bebida amazônica ayahuasca e a psilocibina dos chamados ‘cogumelos mágicos’, cujas moléculas, semelhantes à serotonina, agem especialmente nos receptores do tipo 5-HT2A, localizados em regiões do cérebro envolvidas no processamento das emoções e percepções.
Os efeitos subjetivos dos psicodélicos clássicos incluem alterações emocionais e cognitivas, como maior sensibilidade a sons e cores, visões, mudanças na autoconsciência e memória. Alguns pesquisadores comparam a experiência como uma espécie de ‘sonho lúcido’.
Segundo especialistas, o MDMA é um empatógeno (que gera conexão afetiva e empatia). A substância promove uma plasticidade neuronal que, do ponto de vista terapêutico, facilita a entrega do paciente para romper bloqueios e lidar com sentimentos.
Em 1912 a farmacêutica Merck chegou a sintetizar e engavetar a droga que foi então, redescoberta em 1965 pelo químico norte-americano Alexander Shulgin. Na década de 1970, teve uso em psicoterapia por profissionais de saúde mental para melhorar a capacidade dos pacientes de processar emoções e experiências difíceis.
Quando as pessoas começaram a usar de forma recreativa e virou o queridinho de baladas pelo mundo todo na década de 1980, o MDMA, ainda puro e legalizado, ganhou o apelido de ecstasy.
Depois da proibição, em 1985, a droga passou a ser vendida com baixa qualidade e se tornou uma das mais adulteradas do planeta. Estima-se que atualmente mais de 80% do que chega às ruas, com nomes como MD e bala, sequer contém MDMA.
Estresse pós-traumático afeta 4% da população global
Na região metropolitana de São Paulo, 1,6% da população afirma ter sofrido de Tept há pelo menos 12 meses, e 3,2% já vivenciaram o problema ao longo da vida. Os dados são de um estudo que saiu em publicação do Journal of Psychiatric Research.
“O Tept é uma condição de saúde mental desencadeada após um evento traumático”, explica Bruno Mendonça Coelho, pesquisador do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP), um dos autores da pesquisa.
Segundo Coelho, “as principais características do transtorno são reações físicas e psicológicas de longa duração que geram sofrimento, como angústia e ansiedade intensas, pesadelos, flashbacks, pensamentos disfuncionais.”
Tratamentos disponíveis atualmente são mais para controlar esses sintomas. De acordo com a pesquisa, a condição afeta cerca de 4% da população mundial.
Segundo os autores, há poucos estudos no Brasil, mas estima-se que nas duas principais cidades do país (São Paulo e Rio de Janeiro) o Tept e a exposição ao longo da vida a eventos traumáticos atinjam, respectivamente, 10,2% e 8,7% das populações dessas regiões.
Droga do amor
Nas pesquisas da Maps, após sessões com a MDMA pacientes apresentaram índices significativos de cura ou melhora do Tept. Em estudos de fase 2, mais da metade dos participantes tiveram remissão sustentada por um período prolongado.
Entre os efeitos do MDMA, que justificam a indicação para o tratamento de traumas, destaca-se a sensação de aumento da confiança, em si mesmo e nas pessoas ao redor.
Pesquisas indicam que ocorre um bloqueio da comunicação entre a amígdala, região primitiva do cérebro responsável pelo cuidado e autopreservação, e o resto do córtex, principalmente a parte frontal, do raciocínio mais elaborado e complexo, que reduz a sensação de medo.
Outra qualidade importante do MDMA é aumentar a fabricação da ocitocina, hormônio produzido pelo hipotálamo, responsável por sensações de bem-estar físico e emocional. Isso explica porque o ecstasy também é conhecido como ‘droga do amor’.
Fora do armário
“A Maps é hoje a maior porta-voz do renascimento psicodélico e sua bandeira sempre foi a aprovação do MDMA”, comenta o empresário Marco Algorta.
Para ele, a terapia com MDMA terá enorme relevância no Brasil. Isso porque a maioria dos pacientes atendidos nas pesquisas da Maps, nos EUA e em outros países, foram pessoas expostas à violência.
“Também temos índices elevados de pessoas com traumas causados pela violência urbana”. Outro população que pode ser atendida com a nova terapia, segundo Algorta, são as vítimas de abuso sexual. “É um problema muito grande no Brasil.”
Por aqui, em clínicas particulares, como a Beneva, outras terapias psicodélicas já são uma realidade.
Por exemplo, tratamentos com cetamina para depressão, e com ibogaína para dependência. Mas Algorta afirma estar pronto para trabalhar com o MDMA, tão logo seja possível.
O executivo ressalta que desde a inauguração da Beneva em 2022, a empresa se posicionou como uma clínica de psicodélicos. A ideia, segundo ele, foi justamente ‘sair do armário’ para combater o preconceito que ainda existe em relação a essas substâncias.
Para isso, a empresa está expandindo a atuação para além do atendimento privado aos pacientes. “Sabemos da importância dos protocolos na facilitação dos remédios psicodélicos”, diz Algorta.
“O fármaco é só um facilitador da experiência terapêutica que promove a redução da depressão ou da dependência química. Mas é a terapia em torno da droga que gera o grande efeito”. Ou seja, além de oferecer os tratamentos atualmente legalizados no país, a Beneva está investindo em ciência.
A empresa apoia, atualmente, dois ensaios clínicos que estão em andamento na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Um com psilocibina (presente nos cogumelos do tipo Psilocybe cubensis), para tratar tabagismo, e outro com ayahuasca, para alcoolismo.
Fonte: Reportagem de Carlos Minuano autor do Psicodelicamente para o Carta Capital.