A incrível conexão entre cérebro e intestino explica porque a alimentação influencia o quanto você é capaz de manter o foco e o bom humor
O coração, o fígado e os rins que nos perdoem, mas não há órgão mais fascinante que o intestino.
A começar pelo seu tamanho: se abríssemos e esticássemos seus dois trechos – o delgado e o grosso – ele ocuparia uma área de 250 metros quadrados, o equivalente a uma quadra de tênis!
Isso tudo está enrolado e compactado dentro do nosso abdômen.
E olha que isso nem é o aspecto mais interessante da coisa: o intestino tem neurônios e aloja trilhões de bactérias, boa parte delas envolvida em processos vitais ao organismo.
E você pensando que ele era só um longo tubo por onde a comida passa, os nutrientes são absorvidos e o que não é aproveitado vira cocô… hahahaha
Espera: neurônios lá no abdômen? Sim, falamos das mesmíssimas células que constituem o cérebro.
“O intestino tem cerca de 500 milhões delas”
“Esses circuitos operam sozinhos, ou seja, independem do comando cerebral”
destaca o gastroenterologista Eduardo Antonio André, do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo.
É menos que a massa cinzenta, que tem bilhões de neurônios, claro, mas o suficiente para formar um sistema nervoso próprio, responsável por coordenar tarefas como a liberação de substâncias digestivas e os movimentos que estimulam o bolo fecal a ir embora.
Dá pra entender por que apelidaram o intestino de segundo cérebro?
Os neurônios intestinais chamam atenção também pela grande produção de serotonina, molécula que nos leva ao estado de bem-estar – 90% da serotonina usada pelo corpo é fabricada no intestino!
“Esse neurotransmissor é importante porque garante o funcionamento adequado do órgão”, diz o médico Henrique Ballalai, da Academia Brasileira de Neurologia.
A serotonina também tem efeito sistêmico. E ela é só um dos mais de 30 mensageiros químicos fabricados no ventre.
Esses mensageiros são as substâncias químicas encarregadas de transmitir recados entre os órgãos e estabelecer a incrível conexão entre o intestino e o cérebro de fato.
“Essa conversa ocorre diretamente por meio do nervo vago, estrutura que passa pelo tórax e liga o sistema gastrointestinal à cabeça”, descreve o endocrinologista Filippo Pedrinola, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
O nervo vago é uma via de mão dupla: assim como o abdômen manda mensagens para a massa cinzenta, o correio inverso também ocorre.
“É por isso que, diante de uma situação de estresse, podemos sentir frio na barriga ou vontade de ir ao banheiro”, esclarece Pedrinola.
E a flora intestinal? Tão importante quanto os neurônios é considerada um terceiro cérebro…
Há um terceiro elemento que interfere na conexão entre cérebro e intestino: a cada vez mais estudada flora intestinal.
Microbiota, para sermos corretos.
O intestino carrega cerca de 100 trilhões de bactérias, quantidade dez vezes superior ao número de células do corpo. Esse contingente representa de 2 a 3 quilos do peso total de um indivíduo.
“A microbiota tem papel decisivo na manutenção da saúde. Ela auxilia a digerir alimentos e a nos proteger de infecções”, explica a microbiologista Regina Domingues, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em geral nossa relação com essas bactérias é pacífica e proveitosa para os dois lados: elas conseguem obter nutrientes necessários para sobreviver e, em troca, regulam nosso organismo.
De uns cinco anos pra cá, o interesse por essa metrópole microscópica só aumenta.
Nos Estados Unidos, especialistas de 80 centros de pesquisa lançaram o Projeto Microbioma Humano, que mapeou todos os bichinhos que chamam nosso organismo de lar.
A partir dessa iniciativa, hoje se começa a entender como a flora interfere na predisposição a várias doenças e é capaz de influenciar até o comportamento e as emoções das pessoas.
“Nesse sentido, a microbiota é uma espécie de terceiro cérebro”, brinca o gastroenterologista Pierre Déchelotte, da Universidade de Rouen, na França.
Brincadeira com um belo fundo de verdade.
As bactérias intestinais produzem diversas moléculas que interferem na comunicação entre o sistema nervoso do cérebro e do abdômen
De todos os micro-organismos que habitam o aparelho digestivo e passeiam por ele, a maior parcela é amiga. Há, porém, as frutas (ou melhor, bactérias) podres…
E aí se elas encontram condição para se multiplicar…
“Precisamos que os exemplares benéficos estejam sempre em maior número, porque, assim, controlam os nocivos”, resume a farmacêutica Yasumi Ozawa, da Yakult, pioneira nessas pesquisas.
Os cientistas ainda estão apurando todos os detalhes envolvidos, mas já conhecem alguns fatores que desequilibram a microbiota.
“Uma alimentação muito rica em gordura, por exemplo, está associada ao desenvolvimento de bactérias ruins e à morte de espécimes bons. As manifestações disso são mais gases e distensão abdominal”
exemplifica o coloproctologista Sidney Klajner, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
A desordem ainda é deflagrada por estresse fora de controle e uso de antibióticos, que, para matar os vilões, acabam exterminando também os mocinhos.
Se os germes maléficos dominam o pedaço, é encrenca na certa.
“Isso prejudica as paredes e os movimentos do intestino e dispara inflamações”,
acusa o gastroenterologista Ricardo Barbuti, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
No dia a dia, o indivíduo tem dores, diarreia ou constipação.
Só que o desarranjo local repercute na cabeça. Estímulos de desequilíbrio na barriga viajam até o cérebro e contribuem para o humor e a concentração irem por água abaixo.
Sim, ficamos enfezados.
O impacto desses distúrbios na saúde mental motivou a Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG) a realizar o primeiro estudo sobre a saúde intestinal da mulher brasileira – por razões hormonais, elas estão mais sujeitas a problemas no abdômen do que os homens.
Dois terços das 3 029 entrevistadas declararam ter inchaço no ventre, flatulências e prisão de ventre. Quando questionadas de que maneira os incômodos influenciavam na qualidade de vida, 89% diziam ter variações de humor e 88% reclamavam de menos concentração nas tarefas cotidianas.
“Esses números nos mostram, na prática, como os sintomas abdominais chegam a modificar comportamentos”, resume a imunologista Violeta Niborski, gerente da Danone, empresa que participou do levantamento.
Alimentação e Saúde mental
Os médicos já sabem que condições como a síndrome do intestino irritável, marcada por diarreia ou dificuldade de ir ao banheiro sem razão aparente, propiciam nervosismo e depressão – assim como a ansiedade e o baixo-astral desequilibram a flora e patrocinam as crises.
Acontece que as interações perigosas não param por aí: a microbiota parece fazer diferença na probabilidade de desenvolvermos problemas neurológicos.
Ao comparar ratinhos de laboratório criados para não ter bactérias no intestino com animais dotados de flora, cientistas irlandeses observaram que os primeiros desenvolviam características típicas do autismo, como gastar tempo demais interagindo com um objeto.
Há indícios de que até o Parkinson começaria lá no abdômen.
Especialistas da Universidade College London, na Inglaterra, constataram, após analisar milhares de pessoas, que a constipação é uma das primeiras manifestações do Parkinson.
“Uma hipótese sugere que a microbiota alterada leve à destruição de neurônios intestinais e isso progrida até o cérebro”, conta Ballalai.
O mesmo princípio explicaria o Alzheimer, que consome as memórias.
Apesar de curiosos, esses achados são recentes e carecem de mais provas. “Por ora, a maioria dos estudos está restrita a animais e não pode ser extrapolada para nossa realidade”, contextualiza a médica Maria do Carmo Friche, presidente da FBG.
Mas é possível prevenir, ou até reverter, desequilíbrios na microbiota intestinal?
A resposta é sim.
A flora pode ser modulada para que as bactérias do bem vivam em paz ou voltem a reinar.
E isso é obtido, em parte, via alimentação, quando se investe em comidas menos gordurosas e nutritivas de verdade como frutas, cogumelos, vegetais e probióticos.